Era um menino esperto. Mal batia o sinal já estava ele correndo para fora da sala com aquela bola toda gasta embaixo do braço. Os meninos todos o seguiam e aceitavam as regras do seu jogo. Era um menino levado. Era até mandão. Mas era um menino bom, afinal.
Certo dia fiquei durante recreio sentada atrás da grade em parte da arquibancada vendo a pelada dos rapazes. Queria dar alguma esperança pra eles, mostrar que o mundo era mais do que eles viam na tevê e nas favelas.
A maior dor de um professor é não poder mudar a realidade de um aluno. A maior realização é ver que demos um meio pra que ele mesmo mudasse.
Ele não era bom nas provas. Era ágil, atento, arisco e atrapalhado. Superior, dono do jogo, da conversa, das piadinhas com o professor. E em francês ele era excepcional.
Meus amigos viviam a me perguntar por que dar aula de francês pra filho de marginal. Eu nunca soube responder.
Ele comprava briga, tirava a camisa no futebol. Levantava o amigo que caía. Molhava os outros de suor e ria depois.
Certa vez, na prova de francês, tirou um dois. Mal acreditei quando com a caneta vermelha pontuei sua nota no papel. Logo ele, em quem tanto potencial eu via, um garoto rebelde de tão inteligente.
Com a mesma caneta deixei-lhe um recado na lateral da prova.
Querido Henrique,
Tua nota em muito me decepcionou, meu menino. Sabes que és esperto, sabes que o francês está na ponta da tua língua. Então, meu bem, o que houve? Você é o dono das perguntas mais prazerosas de serem respondidas, e posso ver nos teus olhinhos pequenos o potencial para ser um grande homem. Vejo a tua coragem no futebol, tua dignidade defendendo os teus ideais, vejo-te ajudar teus amigos - e brigar com eles, não raramente.
Ora, vejo-te tão além dos teus treze anos. Sinto-me no dever, como tua professora, de alertar-te e pedir-te para que não te percas, pois o teu futuro, querido, é ser um homem bom.
Um beijo,
Ângela
Quando deixei a prova sobre sua carteira, Henrique olhou-a rapidamente e guardou dentro do caderno. Não olhou para mim, não ficou reflexivo e nunca trocamos uma palavra sobre aquilo. Contei para alguns colegas o que acontecera, Alguns riram perguntando-me se eu realmente esperava alguma reação do garoto; que queriam eles com aquilo, o francês, naquela realidade em que estavam inseridos?
Não era sobre francês que eu estava falando.
Dois meses depois deste episódio Henrique foi embora e nunca mais voltou para a escola. Alguns colegas de turma diziam que o pai dele tinha problemas com o tráfico e que eram fugitivos agora. Outros disseram, mais tarde, que seu pai fora atingido e morto trocando tiros com a polícia. Procuramos seus registros, batemos na porta de sua casa, perguntamos aos vizinhos. Nunca mais tivemos notícia de Henrique. Mas volta e meia eu me pegava a pensar nele; sempre que olhava para todos os outros e queria enxergar um futuro bom. Às vezes pensava que o via na rua, confundia-o com outros garotos, desejava que estivesse vivo e bem. Até que já não podia esperar que ele fosse ainda uma criança. De alguma forma, mesmo passando por minhas aulas mais de duzentos alunos a cada ano que seguia, de alguma forma, Henrique, eu nunca o esqueci.
Trinta anos mais tarde, poucos meses atrás, saindo de uma consulta com o dentista, resolvi voltar para casa caminhando pela orla e apreciando esse meu Rio de Janeiro. O clima estava agradável para um fim de tarde e a paisagem me dava paz. Havia os que corriam na praia, havia crianças e mães, jovens tomando uma água de coco. Eu, a esta altura, fazia parte das senhoras que gostavam de estar ali só pelo prazer que com o tempo aprendemos a sentir quando vemos uma paisagem assim. Vi uma família num quiosque conversando e, logo atrás deles, um homem alto e forte carregava caixas com cocos e as empilhava em uma Kombi branca já bem antiga. Fiquei observando-o, seu porte tão rude e firme, o suor escorrendo-lhe pela testa. Não pude parar de olhá-lo. Comecei, então a reconhecer-lhe o rosto, aqueles olhos. Parei bem ao seu lado.
- Henrique?
Secou as gotas de trabalho da testa com um lenço um pouco gasto e olhou para mim como quem se pergunta se estão de fato lhe dirigindo a palavra. Parou os olhos nos meus e sorriu tão largamente que eu também não pude outra coisa senão sorrir.
- Professora Ângela! - andou desajeitadamente até mim e me envolveu naqueles braços negros e acolhedores demais. Deus, como era bom saber que ele estava ali!
Perguntei-lhe sobre a vida, o que acontecera, como seguira, se tinha voltado a estudar, se tinha filhos, se estava bem. Respondeu-me a tudo calma e polidamente, feliz por falar. Contou-me de seu trabalho duro e honesto. Eu disse como estava contente por saber que seu futuro não se perdera. Ele me olhou sinceramente, levantou-se da calçada em que havíamos sentado, tirou do bolso uma carteira simples e dali um papel bem velho, amarelo, surrado. Abriu-o cuidadosamente para não maltratar nenhum pedaço e me mostrou aquela prova onde eu lhe escrevera. As letras já manchadas pelo gosto do tempo. Eu não pude acreditar. Ele olhou para o papel e passou os olhos sorridentes por aquelas linhas.
- Sempre que eu pensava em me perder, professora, eu lia isso e lembrava o quanto a senhora acreditava em mim.
Eu o abracei sinceramente.
- Eu não ganhei muito dinheiro. Eu nem lembro mais como se falam as coisas em francês. Mas eu sou um homem bom, professora.
Não me lembro de ter me emocionado tanto em toda a minha vida. Senti verdadeiramente naquele momento que alguma diferença eu havia sim feito na vida de pelo menos uma daquelas crianças que jamais usariam o meu francês.
Não era só sobre francês que estávamos falando, afinal.
Texto de Marcos Vinicius de Oliveira Gouvêa.
Desculpem a demora dos posts, eu tava aproveitando meu restinho das merecidas férias. o/
Desculpem a demora dos posts, eu tava aproveitando meu restinho das merecidas férias. o/
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